terça-feira, 1 de março de 2011

Capítulo III

Enfiou a chave no buraco da fechadura e precisou girá-la duas vezes antes de finalmente conseguir abrir a porta. Sua tia estava sentada no sofá, com uma xícara de chá nas mãos, a sala toda cheirava camomila.
- Bom dia, tia Francis.
- Bom dia, Eliza, sente-se.
Sentou-se e discretamente empurrou o baú para trás das costas, na tentativa de escondê-lo dos olhos curiosos e incisivos de sua tia. Explicar de onde ele veio certamente não seria uma história fácil, já que Francis a obrigaria a contar tudinho desde o começo, com requinte de detalhes.
- Esses dias eu estava pensando que você já é uma moça crescida, e vejo que você continua usando jeans surrados e sempre os mesmos casacos sem arrumar os cabelos ou sequer passar um batom e acho que sua mãe desaprovaria isso.
- Minha mãe não está aqui para aprovar ou desaprovar o modo que cuido da minha aparência.
- A questão é que assim você nunca vai atrair os olhos de ninguém. Parece um moleque encardido vestida desse jeito.
- Hm. – Disse retorcendo os cantos dos lábios e desviando o olhar, segurando as palavras ácidas que coçavam em sua língua.
- O que eu queria dizer, é talvez esteja na hora de você receber sua parte por direito nas roupas que sua mãe deixou.
- Roupas? Que roupas? Você disse que mamãe não havia deixado nada para trás! – Quase levantou do sofá ao falar, tamanho o choque ao ouvir isso.
- Venha comigo.
Tia Francis caminhou para o porão da casa. Eliza nunca ia lá por não ter o mínimo interesse nas velharias de sua tia, mas se espantou ao ver que o porão nada parecia com a imagem que ela se lembrava dali. As paredes escuras e a pouca iluminação foram substituídas por paredes cor de creme e grandes lâmpadas brancas. O cheiro de mofo era agora imperceptível, e no lugar das caixas empoeiradas agora tinham armários limpos e organizados com etiquetas.
Eliza mal pode conter a surpresa, com os olhos arregalados, levou a mão a boca.
- O que a senhora fez com esse lugar?
- Transformei aquele buraco em um ambiente agradável. O Jorge ajudou.
Eliza percebeu que Francis dera um meio sorriso bobo ao falar de Jorge.
- O vizinho da frente?
- Ele mesmo.
Ela sempre desconfiara da amizade colorida dos dois, e no fundo desejava que eles ficassem juntos. Assim quem sabe ela ocuparia seu tempo, ficaria com um humor melhor, e não pegaria mais no seu pé.
- E então, vai me mostrar o guarda-roupa secreto da mamãe?
Francis não respondeu, mas foi diretamente a uma cômoda debaixo da escada. Abriu a primeira gaveta e se Eliza já ficara chocada ao ver o lugar, agora seu queixo quase tocara o chão.
- Isso é a coisa mais linda que eu já vi em toda minha vida! – Tocou com cuidado o suave tecido do vestido floral. Era em tons de amarelo e caramelo, com delicadas orquídeas cobrindo-o todo. Não tinha mangas, passava um pouco da altura dos joelhos e era levemente rodado. Tinha alças largas e uma cintura afinada.
- Era o favorito de sua mãe, e se modelava perfeitamente ao corpo dela, que era idêntico ao seu. Se estou certa, ficará igualmente lindo em você.
Eliza jamais vira sua tia falar tanto em toda sua vida, e pela primeira vez se sentia feliz ao lembrar da mãe.
- Ela quis deixar esses vestidos para você, e pediu que eu os entregasse quando tivesse idade suficiente para usá-los.
Eliza ficou bestificada ao ver que as quatro gavetas da cômoda estavam recheadas de vestidos de alta-costura, mas sentiu um frio na barriga ao perceber que sua tia esperava que ela os usasse, e não apenas admirasse a beleza das peças.
- Faça bom proveito disso, eu vou voltar para a minha leitura. – Disse e voltou para a sala, deixando Eliza a sós com as lembranças de sua mãe.

Eliza entrou no quarto com o baú debaixo de um braço e mais dois vestidos no outro. Acomodou os vestidos em cabides e se sentou na cama para analisar melhor o baú.
Ela não tinha a chave e isso claramente indicava que o estranho não queria que ela o abrisse, mas era curiosa e tentou forçar a fechadura com um grampo de cabelo. Sem sucesso.
Pensou o que poderia ter ali dentro, chacoalhou, tentou ouvir se algum barulho vinha dele, mediu e olhou atentamente cada mínimo detalhe.
Já se passava das quatro da tarde quando percebeu que não adiantaria tentar abri-lo, e se contentou em esperar pela manhã seguinte.
Ocupara sua mente com pequenas alegrias que satisfaziam seu espírito fragilizado. Tirar sua própria vida era uma ideia que não a havia atormentado por enquanto, e aproveitou a sensação de não estar afundando dentro de si mesma para pegar uma prancheta para desenhar. Desenhou chaves, de todos os tipos, formas e tamanhos. Era apenas seu inconsciente mostrando o que ela mais queria agora.

Eliza mergulhou num sono profundo que há tempos não provava. Deixou seu corpo relaxar enquanto sua cabeça viajava livre. Sentia-se leve, e quando se deu conta já estava submersa numa paz interior inédita. Despertou num pulo ao ver que já se passava das seis e meia da manhã. Tinha apenas meia hora para se aprontar e ir ao encontro do estranho do baú.

6 comentários:

  1. Amei! Muito criativo, a estória está muito interessante. <3

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  2. Eu disse que seria leitora fiel, cá estou... louca pela continuação.

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  3. Estou adorando a história, Nikki. Você realmente escreve bem demais, e está me deixando curiosa. Vou acompanhar.

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  4. A história está ótima. Começei a ler agora e não vejo a hora do próximo capítulo. Amei de verdade.
    A página está no favoritos, isto é?
    Mais um leitor pra coleção. :3

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  5. Nossa, parece que passam anos de um capítulo pro outro. Ainda bem que você está postando a continuação rapidamente, o que me deixa feliz. :}

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  6. Que vestidos lindos. E eu esqueci de comentar, mas adorei o nome da tia (Francis) e o de Eliza.

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