segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Capítulo II

Já passava das três horas da manhã e Eliza continuava acordada. Seus olhos fixos no teto, seus pensamentos perdidos em algum lugar do infinito. Não dormia há semanas, e esta noite não estava sendo diferente, não conseguiu pregar os olhos nem por um minuto.
Continuava a chegar o relógio com frequência, via as horas se arrastarem como um caracol no asfalto, tão lentamente que chegava a doer.
Colecionava noites mal dormidas assim como cartas escritas, mas nunca enviadas, todas endereçadas à mesma pessoa. Sua mãe.
O pai de Eliza se mudou para a Noruega assim que ela nasceu, e sua mãe desapareceu do mapa sete anos depois. Desde então morava com sua tia Francis num sobrado charmoso afastado do centro da cidade. Tinha um quarto só seu no último andar, com vista para o pequeno jardim dos fundos. Francis era excelente cuidando das plantas, mas o mesmo não podia ser dito sobre a forma que lidava com pessoas. Era fria, não costumava falar muito e quando o fazia, não olhava nos olhos de quem a ouvia. Vestia sempre roupas discretas, com os mesmos tons pastel, pálidos e encardidos. Não saia muito de casa e não entendia qual era a necessidade que as outras pessoas tinham em fazer diferente.
Eliza a respeitava, mas era só isso. Nenhum outro laço mais forte fora criado entre as duas durante todos esses anos de convivência. Sentia falta de sua mãe, mas não costumava falar sobre ela.
Seu quarto não era excepcional, tinha uma cama aconchegante cheia de almofada e uma pequena escrivaninha perto da janela, que era coberta por grossas cortinas. Suas roupas ficavam em um pequeno guarda-roupa branco. E o chão era forrado por um tapete peludo. Um abajour se encontrava aceso, espantando o escuro e seus monstros enquanto Eliza continuava olhando para o teto.
Já se aproximava das quatro da manhã quando sua mente foi invadida por cenas do dia anterior. O prédio, o vento, o estranho. Quem diabos era aquele rapaz? Ele nem dissera seu nome, apenas pediu para que Eliza o encontrasse na manhã seguinte. Debateu consigo mesma os prós e contras de ir ao encontro de um estranho que tentara salvar sua vida. Riu de si mesma ao ver que estava com medo de que ele a sequestrasse, raptasse ou matasse, sendo que na verdade foi exatamente o que ele havia impedido no dia anterior, sua morte. Depois de participar de um ping-pong mental de ideias, suspirou e decidiu que iria sim encontra-lo, colocou na sua cabeça que nada poderia ficar pior do que estava no presente momento.
Pulou da cama e caminhou até o banheiro, escovou os dentes, tomou um banho quente, penteou o cabelo e o prendeu em um rabo de cavalo alto, não gostou e acabou o deixando solto, como sempre. Vestiu um jeans escuro e um cardigã verde-musgo. Calçou os sapatos e saiu sem tomar café.
Já se aproximava das sete da manhã quando chegou ao prédio da prefeitura. Olhou ao redor mas o estranho “salva-vidas” não estava em seu campo de visão, resolveu sentar na escadaria e esperar. Passaram-se vinte minutos e ela já começara a se sentir frustrada e abandonada quando percebeu que ao seu lado direito havia um pequeno baú de madeira, pouco menor que uma caixa de sapatos. Era feito de madeira escura, com desenhos entalhados por toda sua superfície. Eliza tinha certeza que aquele baú não estava lá quando chegou, e o pegou no colo. Não era muito pesado, nem muito leve, mas o que lhe chamou atenção foi a fechadura, tentou abrí-lo e percebeu que ele estava trancado. Junto ao baú havia um bilhete, escrito em letra cursiva: “Gostaria que cuidasse deste baú com mais cuidado do que cuida de sua vida. Me encontre aqui amanhã, neste mesmo horário”.
- Como essa coisa veio parar do meu lado? – Disse, sem perceber que as palavras lhe tinham saído pela boca, escapando de seu blablabla interno. Encolheu os ombros ao ver que tinha dito alto demais e meia dúzia de pessoas a olhavam com visível curiosidade.
Enfiou o baú debaixo do braço, colocou o bilhete no bolso de trás da calça e caminhou de volta para casa.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Capítulo I

“Alguém uma vez disse que a morte não é a maior perda na vida. A maior perda é o que morre dentro de nós quando ainda estamos vivos.”

O sol já se punha esmaecendo as cores daquele dia sem nuvens. O céu azul cobalto se desfazia sobre sua cabeça e seus cabelos castanhos eram sacudidos pelo vento enquanto ela se aproximava, pé ante pé, da beirada. Vinte andares. Sessenta e três metros. Com sorte, não sobraria nada.
Colocou o pé esquerdo sobre o parapeito e parou por um instante para respirar fundo. Se é mesmo verdade que uma sequencia de lembranças da vida se passa diante dos seus olhos como um filme segundos antes da morte, ela queria poder filtrar o que veria durante a queda.
Um turbilhão de pensamentos atravessou sua mente, rodopiando de forma confusa e pouco nítida.
Chacoalhou a cabeça assim que percebeu que na verdade não havia nada em sua vida que merecia ser lembrado, nem agora e nem durante o fim. Ela só queria o fim físico, porque em seu interior, tudo já havia morrido.
Respirou fundo, fechou os olhos, abriu os braços lentamente e já estava arrastando o pé direito para o parapeito quando seu blábláblá interior foi interrompido por uma voz:
- Se eu fosse você não pularia.
Mas que ótimo, só lhe faltava se tornar esquizofrênica agora.
Respirou fundo mais uma vez e tomou impulso.
- Nada começa bem com o pé esquerdo.
Sem abrir os olhos, respondeu em voz alta: - Caso não tenha percebido, isso não é um começo. É um fim.
- Mas todo fim tem um começo, e neste caso, seu começo do fim está completamente errado.
Que maravilha, como se não bastasse ser bizarro o bastante o fato de ouvir vozes, tinha que também aguentar as provocações feitas por elas.
- Não diga que eu não avisei se você chegar ao chão estraçalhada, mas viva.
- São sessenta e três malditos metros! É óbvio que eu não chegarei viva lá embaixo! – Irritada, retrucou.
- Ah, então você fala. – Completou a voz.
Abriu os olhos e voltou a cabeça para trás, encontrando o que não esperava. Um garoto, sentado próximo às escadas com as pernas esticadas. Usava um jeans surrado e uma jaqueta de couro marrom sobre uma camiseta branca. Enquanto olhava para ela, passava o dedo por um isqueiro, acendendo-o múltiplas vezes, mesmo sem ter nenhum cigarro nas mãos.
- Mas se quiser pular, fique a vontade.
- Eu vou pular, só não quero ninguém me olhando. Será que você pode sair pelo mesmo lugar que entrou e me dar um pouco de privacidade ou eu vou ser obrigada a te jogar daqui antes?
- Você não quer mesmo pular. – Ele disse, sem a olhar nos olhos, apenas concentrado na chama que saia do isqueiro.
- Se eu não quisesse mesmo, eu não teria subido até aqui. – Disse, quase cuspindo as palavras.
- Se você quisesse mesmo, já teria pulado. – Ainda sem a olhar nos olhos, ele falou de forma calma e quase dava para apalpar o deboche desafiador saindo de sua boca.
A esta altura, ela já podia sentir seu sangue fervilhando sob sua pele, e já começara a sentir as bochechas corarem de raiva. Para não deixar que ele visse isso, se virou de costas novamente.
- Por que você não me deixa acabar com isso de uma vez?
- Porque eu sei que no fundo não é isso que você realmente quer. Você quer acabar com a dor, não com a sua vida. Você só quer um motivo pra viver. Na realidade, só quer ser salva. Se quiser ver sua vida por outro lado, me encontre amanhã às seis horas em frente ao prédio da prefeitura. Se em uma semana você não mudar de ideia, pode tentar pular de novo, e prometo que não tentarei mais ajudá-la. – Ele colocava a mochila sobre um dos ombros e caminhava em direção à escada enquanto falava. – Bom, agora só depende de você, e se realmente for se atirar como uma bigorna daqui de cima faça isso logo, porque um temporal está à caminho. Boa sorte.
Ele saiu, e ela voltou a se perder em sua própria tempestade de pensamentos. No fundo, sabia que o que ele dissera era uma irrefutável verdade. Odiava admitir isso a si mesma, mas mais uma vez ela não teria coragem de terminar o que começou. Soltou os braços e se afastou da beirada, vencida pelas palavras daquele estranho cheio de mistérios.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Baú de pesadelos.

Ele tinha o sabor do céu num pôr-do-sol de outono. Era agridoce, suave e quente. Era acolhedor se aconchegar em seus braços, e este era o único jeito de fazê-la dormir. Ultimamente os pesadelos a assombravam durante as noites e a perseguiam durante o dia. Desprotegida e cansada, não queria, e nem podia mais fechar os olhos.

Já devia ser cinco horas da manhã, o nascer do sol tocava suavemente a grama fresca, refletindo as gotículas de orvalho.

- Já acordada?
- Hm, sim. – Disse, esfregando os olhos com a manga da blusa.
- Desculpe, eu… não queria te acordar.
- Não me acordou. – Ajeitando os cabelos, tentou parecer convincente.
- Teve pesadelos?
- Na verdade, não. Só sonhei com aquele baú novamente. – Finalmente se ajeitou de modo que pudesse lhe olhar nos olhos, mesmo deitada em seus braços numa apertada rede na varanda. - Tem certeza que não sabe onde está a chave dele? Talvez debaixo de algum tapete pesado, ou dentro de alguma caixinha de veludo… Sua casa não é tão grande assim, é? Não é possível, ela deve estar lá!
- Eu não sei, não faz muito tempo que me mudei pra lá, talvez os antigos donos a levaram embora.
- Mas porque eles levariam a chave e deixariam o baú? Não faz sentido!
- Talvez eles quisessem se livrar do que quer que seja que está ali dentro, mas ao mesmo tempo não queriam que ninguém mais tivesse acesso à aquilo.
- Escuta, eu não sei com o que estamos lidando, mas eu quero a tranquilidade dos meus sonhos de volta! Não aguento mais me sentir presa num filme de ação e suspense todas as noites! Eu… eu preciso descansar.
- Mas você tem conseguido dormir comigo, quero dizer, dormir, só dormir, ah, você entendeu.
- Tenho, mas não é a mesma coisa. – Disse, corando e abaixando os olhos.
- Se você quiser, podemos ir vasculhar o sótão mais uma vez. Tem uns gaveteiros velhos e empoeirados lá. Nunca se sabe.
- Me parece bom, mas jogar um pouco de água no rosto, pentear os cabelos e escovar os dentes antes me parecem uma ideia melhor ainda, por enquanto.
- Tudo bem, vou preparar duas xícaras de chá para nós, então.
- Eu preferiria café. Preciso de algo forte que me mantenha acordada, se não se importa.
- Sem problemas.

Levantou delicadamente da rede, ou pelo menos tentou e caminhou até a torneira mais próxima para lavar o rosto.
Não tinha o luxo de lavar o rosto pela manhã num banheiro, com sabonete e toalhas desde que o primeiro pesadelo lhe assombrou. Dormir no estábulo era a forma que havia encontrado de se sentir mais protegida. A energia dos cavalos provavelmente bania parte dos seus pesadelos, e a outra parte era suavizada quando ele estava por perto. Por segurança, resolveu unir as duas coisas, montando uma rede improvisada entre duas baias.

Estava dormindo assim há duas semanas.

Depois de jogar um pouco de água fria no rosto, caminhou até a baia de Cherokee. Acariciou o focinho da égua negra e lhe entregou um pedaço de cenoura que guardava no bolso.

- Eu realmente espero que isso tudo melhore logo, sinto falta de lhe cavalgar, donzela, mas essas dores nas costas por causa das noites mal dormidas fariam com que eu parecesse um saco de cimento das suas costas.

Cherokee relinchou e aproximou o focinho de suas bochechas, dando uma fungada de leve.

-Está com dores nas costas? – Estava encostado na porta da baia ao lado e disse, lhe entregando uma xícara. – Cuidado, está quente.
- Hm, o que? Ah, desde quando você está aqui?
- Desde que a donzela lhe deu um beijinho da bochecha. – Apontou a égua negra com o queixo. – Ela é bonita.
- Eu sei.
- Mas ainda não me disse se está com dores nas costas.
- Não é nada.
- Eu poderia lhe fazer uma massagem.
- Não é nada.
- Eu me preocupo com você.
- Pois não deveria. – Tomou um gole do café e apertou os olhos ao perceber que queimara a língua.
- Eu quero mandar esses pesadelos embora.
- Você não tem culpa.
- Tenho sim, fui eu quem abriu o baú.