domingo, 13 de março de 2011

Capítulo VI

Eliza permaneceu girando até mesmo em terra firme. Sua cabeça rodopiava como um pião, suas mãos suavam, seu estômago parecia querer saltar pela boca. O chão se tornara de gelatina, mole, não lhe dava apoio. Seus olhos não conseguiam focalizar mais nada, tudo se tornara um borrão. Levou as mãos ao rosto, dobrou os joelhos e desabou.
Chorou, chorou aos soluços. Não era amor, não era amizade, não era nada mais que uma forte ligação com um estranho, atada através de nós que não se arrebentariam facilmente. Por que isso lhe acontecera? Porque se deixara envolver pela sedução de um mistério? A culpa transbordava pelos seus olhos.
Já havia perdido a noção do tempo quando suas lágrimas secaram, ainda com as pernas bambas, se arrastou até em casa. Não sabia por que se abalara tanto, uma vez que não se considerava apaixonada por ele, ou pelo menos não se permitia admitir isso. Mas sabia que Franco nunca mais a procuraria. Não deveriam deixar esse sentimento crescer.
Mas por quê?
Perguntas ecoavam em sua cabeça durante todo o trajeto para casa.
A caminhada que raramente levava mais de quinze minutos lhe tomou quase quarenta, e quando finalmente atravessou o portão, se deu conta que sua cara deveria estar horrível. Abriu a torneira do quintal e jogou um pouco de água fria no rosto antes de limpar os pés para entrar.
- Você tem noção de que horas são, mocinha? Esqueceu que temos compromisso esta noite?! – Mal colocara os pés para dentro de casa e já fora recebida por sua tia Francis bravejando. – Você tem meia hora para se arrumar, vá tomar um banho e coloque um vestido bem bonito, arrume esse ninho de rato que está o seu cabelo e tente dar uma melhorada nesse rosto. Rápido!
Eliza não respondera, apenas se arrastara para o quarto. Degrau por degrau. Isso lhe custou um esforço tão grande que parecia estar escalando o Everest. Abriu o guarda-roupa e olhou para os dois vestidos que deixara pendurados. Um era verde, florido, sem mangas e o outro era alaranjado, com delicados botões. Nenhum lhe agradou no momento, então decidiu voltar o porão para escolher outro.
Foi diretamente ao armário onde tia Francis estocara os antigos vestidos da mãe de Eliza, e os escondera por tantos anos. Abriu a terceira gaveta e puxou um lindo vestido azul marinho. Ultrapassava a altura dos joelhos, tinha mangas curtas, botões e dois bolsos. Era simples, porém elegante, e era principalmente discreto. Esticou-o alisando as dobras em seu corpo para ter uma ideia de como ele ficaria, e foi neste momento que sentiu alguma coisa em um dos bolsos. Apalpou-o e curiosa, colocou a mão, procurando pelo objeto que ali estava.
Era uma chave.
Não deu muita importância e a enfiou no bolso de seu jeans, pegou o vestido e subiu para tomar banho.
Lavou os cabelos e tirou todo o cheiro salgado das lágrimas que pareciam ter grudado em seu rosto. Passou um pouco de perfume e colocou o vestido tomando todo o cuidado do mundo. Abaixou para pegar a caixa de “sapatos de pouco uso” debaixo da cama, e notou que o baú de Franco ainda estava ali.
Como um estalo, se lembrou da chave que encontrara no bolso do vestido. Não fazia o menor sentido, mas não custava experimentá-la. Enfiou a mão no bolso do jeans embolado e pegou a chave, não tinha reparado antes, mas ela tinha o mesmo padrão de detalhes que a fechadura do baú. Sentiu um calafrio percorrer sua espinha, respirou fundo, e colocou a chave no buraco.
Girou-a e ouviu um clic. O baú se abrira.
Não havia moedas de ouro, joias e nem um mapa do tesouro. Haviam fotografias.
Pegou a primeira e viu duas crianças no berço, abraçadas, uma de macacão rosa, e a outra de azul. Pegou outra e nela haviam duas crianças brincando, não deveriam ter mais que um ano de idade. Na outra fotografia as duas crianças estavam no colo de uma moça muito bonita.
Uma onda de choque percorreu o corpo de Eliza, suas mãos tremiam com tamanha violência que ela mal podia segurar as fotos sem derrubá-las.
A bela moça da foto era sua mãe.
Não havia visto muitas fotos de sua mãe até então, mas poderia reconhecer aqueles profundos olhos escuros e os cabelos castanhos encaracolados em meio a uma multidão de rostos. Audrey era seu nome, mas ela evitara pronunciá-lo porque doía demais.
Virou uma das fotos e no seu avesso havia uma anotação escrita à caneta, quase totalmente apagada pelo tempo.
“Franco e Eliza, os amores da mamãe Audrey”
Eliza jogara as fotos sobre a cama e levou as mãos a boca, em pânico. Lágrimas saiam queimando dos seus olhos, o choque e o horror eram tão grandes que ela não conseguia se fazer parar de tremer.
Franco era seu irmão.
E era por isso que ela não podia se apaixonar por ele.
Mas já era tarde demais.

Tudo se encaixara em sua cabeça com um quebra cabeça. Era por isso que ele se importava tanto com ela, era por isso que ela sentia como se o conhecesse há muito tempo, e era por isso que não sabia explicar a estreita conexão que tinham. Mas ela arruinara tudo confundindo os sentimentos.
Culpa, medo e dor lhe torturavam por dentro, e foi neste momento que percebeu o tamanho da merda que fizera. Isso foi o bastante para que ela tomasse uma decisão extrema.

Na manhã seguinte encontraram o corpo de Eliza desfigurado, com dezenas de ossos quebrados, próximo ao prédio mais alto da cidade. Ela não resistira à queda de sessenta e três metros. Sessenta e três malditos metros.
Eliza não deixara nenhum bilhete, apenas a sombra de sua curta passagem pela Terra e o grito de socorro que ninguém ouvira.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Capítulo V

Eliza acordou quando uma fresta de luz tocou seu rosto, abriu os olhos e levantou-se preguiçosamente. Foi até o banheiro lavar o rosto e pentear o cabelo, amarrou-o em um rabo de cavalo alto.
Desceu as escadas ainda em seu pijama e foi até a cozinha. Encontrou tia Francis debruçada no balcão lendo uma revista de atualidades.
- Bom dia. – Francis disse, sem tirar os olhos do que lia.
- Bom dia. – Respondeu, sem entusiasmo algum.
- Nós vamos jantar fora esta noite.
- Por que?
- Por que eu quero lhe apresentar ao Jorge.
- Mas ele já me conhece! Quer dizer, ele mora aqui na frente, é lógico que já me conhece. – Eliza pronunciava as palavras como quem estivesse dizendo a coisa mais óbvia do mundo.
- Quero lhe apresentar formalmente. E vestida como uma dama.
- Formalmente? Então vocês... você e ele... estão... namorando?
- É, sim.
Eliza não pôde conter a risada e quase derramou no chão todo o leite que colocava na caneca.
- Meu Deus, quem poderia imaginar! – E acrescentou mentalmente “Nunca imaginaria que essa sem coração da tia Francis pudesse namorar alguém”.
Francis não respondeu, apenas abaixou os olhos e voltou a se concentrar na sua leitura.
Eliza colocou um pouco de café no leite, e em seguida açúcar e foi bebericando cuidadosamente para não queimar a língua enquanto caminhava até a porta da sala. Encontrou um bilhete sob a porta, e o pegou.
Nele estava escrito:
“Dez horas da manhã, mesmo lugar. Te vejo lá”.
Imediatamente reconhecera a caligrafia, e acabou se sentindo imensamente feliz pelo fato de que o veria hoje. Não sabia explicar qual era a ligação que tinha com ele, mas sabia que era forte. Olhou para o relógio e viu que já se aproximava das nove e meia, se apressou, terminou de tomar seu café e subiu para se vestir. Como se fosse novidade, vestiu jeans, camiseta, e sapatos.
Se esgueirou pela porta para não ter que dar satisfações a tia Francis, e caminhou até o prédio da prefeitura onde encontrou Franco sentado na escadaria, como no dia anterior, porém sem os cavalos.
- Oi. – Disse, tímida.
- Bom dia, vamos dar uma volta? – Ele respondeu sorrindo.
- A pé?
- Sim.
- Pra onde?
- Gosta de parques de diversão?

Caminharam até o parque da cidade. Ficava próximo ao rio e não era muito grande, nem muito lotado, mas também não era daqueles parques abandonados beirando a falência.
- Aonde quer ir primeiro? – Ele perguntou.
- Eu gosto da roda-gigante.
- Eu também.
Sentaram-se na cabine azul, que Eliza escolheu.
- O que mais te incomoda agora?
- Oi? – Eliza respondeu, sendo puxada de seus próprios pensamentos onde estava imersa.
- Hm, as dúvidas.
Franco esperou, e Eliza entendeu que ele queria que ela continuasse a falar.
- Sabe, eu mal conheci minha mãe, não sei quem é meu pai, minha tia não demonstra nenhum afeto por mim, eu não sei que vida eu quero pra mim e... É, é isso.
- Tem um garoto.
- Sempre tem, não é mesmo?
- Como ele era?
- Bom demais pra mim.
- E por que você acha isso?
- Acho que é bem óbvio. – Disse Eliza, se encolhendo, um pouco constrangida.
- Foi ele que fez você querer pular?
- Ele foi uma das razões, na verdade.
- Então porque você acha que ele é bom demais pra você se ele te fez sofrer tanto a ponto de querer desistir da vida?
Eliza foi pega de surpresa pela pergunta, e não conseguiu esconder isso. Não sabia como deveria responder e ficou em silêncio por um tempo. Franco percebeu o crescente desconforto causado pelo silêncio e resolveu mudar bruscamente de assunto.
- Você tem irmãos?
Eliza sentiu um alívio imediato pela mudança de assunto, e soltou o ar dos pulmões antes de responder.
- Não. Quer dizer, talvez eu tenha, mas não conheço.
- E sua tia, é casada?
- Não, mas hoje será o jantar de oficialização do namoro dela com o vizinho da frente da nossa casa. Quão estranho é isso?
- Nem um pouco.
- Muito!
- Tá, talvez um pouco, mas ela tem o direito de provar o amor, todo mundo tem. Não importa a idade.
- Você está muito filosófico hoje, hein? O que aconteceu?
Franco corou e hesitou um pouco para responder.
- Eu só estou querendo te mostrar um lado bom da vida, um lado onde mudanças realmente acontecem quando é dado uma segunda chance à ela.
- Nossa, Franco, falando assim eu até me apaixono por você. – Eliza soltou as palavras sem pensar e quando percebeu o que tinha dito, corou feito um tomate maduro, mesmo sabendo que havia dito demais, não podia prever a reação de Franco.
- Não diga isso nem de brincadeira, Eliza. Você não pode se apaixonar por mim. Não mesmo.
Eliza sentiu suas bochechas queimarem e como se constrangimento não fosse o bastante, agora se sentia profundamente ofendida.
- Por que? Você é bom demais pra mim também?
- Não, não é nada disso. Você... Você não pode. - Franco foi se desprendendo do cinto conforme a cabine ia se aproximando de volta ao chão. – Sabe de uma coisa? Acho melhor nosso passeio terminar por aqui, essa roda-gigante me deu náuseas e você realmente não vai querer ver a segunda parte do cachorro-quente que eu comi no café-da-manhã.
Sem que Eliza pudesse dizer mais alguma coisa, Franco pulou da cabine e se enfiou entre as pessoas que estavam no parque, se camuflando até sumir.
Eliza permaneceu em choque sem conseguir se mover por um bom tempo, enquanto a roda continuava girando, girando e girando.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Capítulo IV (Segunda Parte)

- Posso saber onde a senhorita esteve? – Francis lhe recebera na porta, de braços cruzados, com típico olhar desconfiado de sempre e os lábios curvados nos cantos, mostrando clara desaprovação.
- Ahn... Por aí. – Eliza disse tentando filtrar as informações. Ela sabia que sua tia lhe espremeria as informações como o suco de uma laranja madura, a obrigando a contar tudo em detalhes. Mas ela não respondeu, só continuou encarando Eliza esperando por uma resposta decente.
- Eu estava na biblioteca. – Disse, forçando a mentira a sair de forma mais natural possível. Não funcionou.
- E desde quando tem barro na biblioteca? – Francis respondeu, olhando para a lama nos sapatos de Eliza.
- É que depois eu fui dar uma volta no parque para espairecer. Nada demais. – Tentara parecer tranquila usando os braços para gesticular, mas acabou quase derrubando o vaso do seu lado com o cotovelo.
- Hum. – Francis fez uma careta de insatisfação e esperou alguns segundos antes de continuar, apenas filmando Eliza dos pés à cabeça com os olhos. – Vá tomar um banho, você está fedendo à feno.

Eliza subiu as escadas tentando cheirar as próprias roupas, e ao contrário de Francis, não achou o cheiro desagradável. Na verdade, até encontrou um pouco de conforto no cheio de feno e terra, mas como passara o dia todo fora, foi tomar um banho quente mesmo assim.
Saiu minutos depois, enrolada em uma toalha e com os cabelos pingando. Enfiou-se num confortável pijama de flanela e resolveu fazer algo que não fazia há muito tempo, pegou seu diário para escrever.

“Querido diário, sinto muito por ter te abandonado nas últimas semanas, mas acredite, foi para o seu próprio bem. Ou você queria morrer afogado em lágrimas? É, acho que não.
Desta vez não vou reclamar da vida, nem da tia Francis, nem da dor nas coxas que sinto agora por ter andado à cavalo. Na verdade, vim contar que acho que estou criando um elo muito forte com alguém que conheci a pouco. É uma ligação estranhamente intensa. Me sinto desafiada e protegida com a presença dele, como se ele me forçasse a enfrentar meus medos sem “passar a mão na minha cabeça” mas ao mesmo tempo é como se estivesse lá caso eu caísse. O nome dele é Franco, ele me entregou um baú e, minha nossa, como desejo abri-lo! Sei que isso é só uma parte dos mistérios que ele carrega, mas minha vontade de desvendá-los um a um cresce cada vez mais. Obviamente não deixarei que ele note o quanto seus segredos me fascinam, mas é incrível como apesar de me conhecer há três dias, me sinto como se ele me conhecesse desde que nasci.”

Eliza fechou o diário e o enfiou sob o colchão. Puxou suas cobertas e caiu num sono profundo. Não combinaram de se ver no dia seguinte, e por algum motivo isso lhe incomodava bastante.

Capítulo IV

Faltava pouco menos de cinco minutos para as sete da manhã quando Eliza dobrou a esquina. Estava a poucos metros do prédio da prefeitura e andava apressada para chegar na hora marcada, mas suas pernas congelaram ao ver que o estranho estava sentado no terceiro degrau da escadaria, exatamente onde ela se sentara no dia anterior. Ele segurava dois cavalos pelas rédeas, afagando o focinho de um deles.

- Bom dia. - Ele disse, tirando os olhos dos cavalos por um instante.
- Erm, bom dia.
- Não precisa ter medo, eles são mansos.
- Não estou com medo deles, só... na verdade estou com medo do que você pretende fazer com eles. - Eliza disse, apontando os animais com o queixo.
- Nós vamos montá-los, oras.
- Nós vamos o que? – Eliza não conseguia esconder o tom de surpresa em sua voz.
- Está com medo?
- Nós estamos numa cidade! – Eliza disse enfatizando cada sílaba da palavra “cidade”. - E se um carro bater na gente? E se um ônibus nos atropelar? E se...
- Mas olha só, para quem queria se jogar do topo de um prédio, até que está bem mais preocupada com a sua vida agora. – Ele disse, e riu.
Eliza bateu os pés no chão, cruzou os braços e respirou fundo, então percebeu que parecia uma garotinha mimada fazendo isso e se recompôs.
- E então o que vamos fazer, afinal? – Indagou, com um tom de voz muito mais controlado.
- Vamos dar uma volta, quero te mostrar um lugar. Venha, a égua alazã é sua.
- Alazã? A negra ou a cor de canela?
- Alazão é o nome dessa pelagem cor de canela, o negro é macho, e é o meu.
- Ah, tudo bem, mas eu não sei montar.
- Não tem problema, ela vai seguir meu cavalo. Venha cá, você sempre sobe no cavalo pelo lado esquerdo.
Eliza contornou a égua avermelhada até se posicionar do seu lado esquerdo. – E agora?
- Coloque o pé esquerdo no estribo, esse triângulo de metal, e faça impulso para subir.
Eliza fez isso, então ele lhe entregou as rédeas e mostrou como ela deveria segurá-las, e com uma velocidade e destreza impressionante ele já estava nas costas do cavalo negro.
Ele saiu a passo, e sem que Eliza precisasse dar qualquer comando, sua égua o seguiu.
- Ei, qual é o nome dela? – Eliza disse, apontando para sua égua.
- Escarlate.
- E o dele?
- Zeus.
- E o seu?
- Franco.
- Franco?
- Sim.
- Legal, bem sincero.
E então Franco cutucou a barriga de Zeus com os calcanhares e ele acelerou a velocidade. Eliza grudou na crina de Escarlate com força, achando que não fosse conseguir acompanhar. Dobraram a esquina e foram galopando até os limites da cidade. Franco guiou seu cavalo paralelo a um trilho de trem e a poeira de terra seca foi subindo.
- Está tudo bem aí atrás? – Ele perguntou.
- Uhul! Tô me sentindo o Zorro! – Eliza gritou em resposta.
- Então segure-se! - Franco cutucou o cavalo com os calcanhares mais uma vez. Agora estavam galopando a uma velocidade que fazia tudo o que Eliza via ao redor parecer apenas um borrão. Era uma sensação gostosa que misturava liberdade e medo sem parecer contraditória.
Galoparam paralelos ao trilho do trem por cerca de dois quilômetros, até que Eliza finalmente avistou uma antiga estação de trem que fora desativada na década de 70. Franco foi reduzindo a velocidade e guiou Zeus a subir uma rampa que dava acesso à estação, desmontou e ajudou Eliza a desmontar.
- O que exatamente é esse lugar?
- Bem, é a minha casa.
- Você mora numa estação de trem? Sozinho?
- Desculpe se estou te surpreendendo tanto hoje, eu achei que vivia uma vida bem normal, mas pelo visto sou um alienígena pra você.
Eliza deu as costas e caminhou pela estação. Não era o lugar mais limpo que já vira, mas também não era o mais sujo. Cheirava a feno, madeira antiga, ferrugem e cavalos.
- Então é aqui que você se esconde?
- Eu não me escondo, só não fico me exibindo por aí.
- Ah, sim, e esses cavalos são todos seus?
- Sim.
- E como você consegue dinheiro pra viver sozinho? Desculpe a indelicadeza, mas você não me parece ser muito mais velho do que eu. Você trabalha?
- Na verdade a maioria deles eram cavalos de carroça, ou que foram abandonados. Eu os trago pra cá, cuido deles e as vezes consigo vende-los para as cidades vizinhas.
- Interessante.
Franco levou os cavalos até suas respectivas baias, tirou a sela e o cabresto e serviu-lhes um pouco mais de feno e água. Eliza observava tudo atentamente, bestificada pela facilidade que ele tinha para lidar animais de meia tonelada sem demonstrar um pingo de medo.
- Você sempre faz isso?
- O que? Alimentá-los?
- Não, salvar a vida dos outros.
- Só quando eu me importo.
- E por que você se importaria comigo? Você nem me conhece!
- Alguém tem que zelar pela sua vida já que você não o faz, não é mesmo? Afinal, o que você estava querendo fazer aquele dia? – Poderia ser apenas impressão de Eliza, mas para ela, ele soara grosso demais.
- Pensei que você já tivesse chego a essa conclusão. – Eliza disse com tom de deboche.
- A única conclusão que cheguei é que você não queria se matar.
Eliza ficou sem palavras por alguns segundos, formulando uma resposta afiada para rebater, mas logo percebeu que não podia negar que Franco tinha um pouco de razão no que dissera, então suspirou e cedeu.
- Talvez. Eu só queria aliviar essa pressão que pesa sobre meus ombros e esmaga minhas costelas toda vez que respiro. Talvez parar de respirar fosse mais fácil. Não sei se você já se sentiu assim, mas é uma sensação de estar perdida dentro de si própria, afogando no fundo dum oceano de lágrimas, sem bote salva-vidas. Sozinha.
- Felizmente não.
- Sorte a sua.
E então eles permaneceram em silêncio por um bom tempo. Franco escovava os cavalos e Eliza apenas observava, pensando se deveria acrescentar mais alguma coisa ou apenas continuar calada.
- E a chave?
- Que chave?
- Do baú.
- Por que eu te daria a chave?
- Para que eu possa abrir o baú? – Eliza retrucou como se esta fosse a resposta mais óbvia do mundo, só faltava levar a mão na testa e dizer “duh, idiota!”, mas parou por aí.
- E quem disse que é para você abri-lo? – Franco respondeu, erguendo as sobrancelhas.
- Ué, então por que você o entregou pra mim? – Disse, claramente confusa.
- Pra que você cuidasse dele.
- E eu nunca vou saber o que tem lá dentro?
- Vai, na hora certa.

terça-feira, 1 de março de 2011

Capítulo III

Enfiou a chave no buraco da fechadura e precisou girá-la duas vezes antes de finalmente conseguir abrir a porta. Sua tia estava sentada no sofá, com uma xícara de chá nas mãos, a sala toda cheirava camomila.
- Bom dia, tia Francis.
- Bom dia, Eliza, sente-se.
Sentou-se e discretamente empurrou o baú para trás das costas, na tentativa de escondê-lo dos olhos curiosos e incisivos de sua tia. Explicar de onde ele veio certamente não seria uma história fácil, já que Francis a obrigaria a contar tudinho desde o começo, com requinte de detalhes.
- Esses dias eu estava pensando que você já é uma moça crescida, e vejo que você continua usando jeans surrados e sempre os mesmos casacos sem arrumar os cabelos ou sequer passar um batom e acho que sua mãe desaprovaria isso.
- Minha mãe não está aqui para aprovar ou desaprovar o modo que cuido da minha aparência.
- A questão é que assim você nunca vai atrair os olhos de ninguém. Parece um moleque encardido vestida desse jeito.
- Hm. – Disse retorcendo os cantos dos lábios e desviando o olhar, segurando as palavras ácidas que coçavam em sua língua.
- O que eu queria dizer, é talvez esteja na hora de você receber sua parte por direito nas roupas que sua mãe deixou.
- Roupas? Que roupas? Você disse que mamãe não havia deixado nada para trás! – Quase levantou do sofá ao falar, tamanho o choque ao ouvir isso.
- Venha comigo.
Tia Francis caminhou para o porão da casa. Eliza nunca ia lá por não ter o mínimo interesse nas velharias de sua tia, mas se espantou ao ver que o porão nada parecia com a imagem que ela se lembrava dali. As paredes escuras e a pouca iluminação foram substituídas por paredes cor de creme e grandes lâmpadas brancas. O cheiro de mofo era agora imperceptível, e no lugar das caixas empoeiradas agora tinham armários limpos e organizados com etiquetas.
Eliza mal pode conter a surpresa, com os olhos arregalados, levou a mão a boca.
- O que a senhora fez com esse lugar?
- Transformei aquele buraco em um ambiente agradável. O Jorge ajudou.
Eliza percebeu que Francis dera um meio sorriso bobo ao falar de Jorge.
- O vizinho da frente?
- Ele mesmo.
Ela sempre desconfiara da amizade colorida dos dois, e no fundo desejava que eles ficassem juntos. Assim quem sabe ela ocuparia seu tempo, ficaria com um humor melhor, e não pegaria mais no seu pé.
- E então, vai me mostrar o guarda-roupa secreto da mamãe?
Francis não respondeu, mas foi diretamente a uma cômoda debaixo da escada. Abriu a primeira gaveta e se Eliza já ficara chocada ao ver o lugar, agora seu queixo quase tocara o chão.
- Isso é a coisa mais linda que eu já vi em toda minha vida! – Tocou com cuidado o suave tecido do vestido floral. Era em tons de amarelo e caramelo, com delicadas orquídeas cobrindo-o todo. Não tinha mangas, passava um pouco da altura dos joelhos e era levemente rodado. Tinha alças largas e uma cintura afinada.
- Era o favorito de sua mãe, e se modelava perfeitamente ao corpo dela, que era idêntico ao seu. Se estou certa, ficará igualmente lindo em você.
Eliza jamais vira sua tia falar tanto em toda sua vida, e pela primeira vez se sentia feliz ao lembrar da mãe.
- Ela quis deixar esses vestidos para você, e pediu que eu os entregasse quando tivesse idade suficiente para usá-los.
Eliza ficou bestificada ao ver que as quatro gavetas da cômoda estavam recheadas de vestidos de alta-costura, mas sentiu um frio na barriga ao perceber que sua tia esperava que ela os usasse, e não apenas admirasse a beleza das peças.
- Faça bom proveito disso, eu vou voltar para a minha leitura. – Disse e voltou para a sala, deixando Eliza a sós com as lembranças de sua mãe.

Eliza entrou no quarto com o baú debaixo de um braço e mais dois vestidos no outro. Acomodou os vestidos em cabides e se sentou na cama para analisar melhor o baú.
Ela não tinha a chave e isso claramente indicava que o estranho não queria que ela o abrisse, mas era curiosa e tentou forçar a fechadura com um grampo de cabelo. Sem sucesso.
Pensou o que poderia ter ali dentro, chacoalhou, tentou ouvir se algum barulho vinha dele, mediu e olhou atentamente cada mínimo detalhe.
Já se passava das quatro da tarde quando percebeu que não adiantaria tentar abri-lo, e se contentou em esperar pela manhã seguinte.
Ocupara sua mente com pequenas alegrias que satisfaziam seu espírito fragilizado. Tirar sua própria vida era uma ideia que não a havia atormentado por enquanto, e aproveitou a sensação de não estar afundando dentro de si mesma para pegar uma prancheta para desenhar. Desenhou chaves, de todos os tipos, formas e tamanhos. Era apenas seu inconsciente mostrando o que ela mais queria agora.

Eliza mergulhou num sono profundo que há tempos não provava. Deixou seu corpo relaxar enquanto sua cabeça viajava livre. Sentia-se leve, e quando se deu conta já estava submersa numa paz interior inédita. Despertou num pulo ao ver que já se passava das seis e meia da manhã. Tinha apenas meia hora para se aprontar e ir ao encontro do estranho do baú.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Capítulo II

Já passava das três horas da manhã e Eliza continuava acordada. Seus olhos fixos no teto, seus pensamentos perdidos em algum lugar do infinito. Não dormia há semanas, e esta noite não estava sendo diferente, não conseguiu pregar os olhos nem por um minuto.
Continuava a chegar o relógio com frequência, via as horas se arrastarem como um caracol no asfalto, tão lentamente que chegava a doer.
Colecionava noites mal dormidas assim como cartas escritas, mas nunca enviadas, todas endereçadas à mesma pessoa. Sua mãe.
O pai de Eliza se mudou para a Noruega assim que ela nasceu, e sua mãe desapareceu do mapa sete anos depois. Desde então morava com sua tia Francis num sobrado charmoso afastado do centro da cidade. Tinha um quarto só seu no último andar, com vista para o pequeno jardim dos fundos. Francis era excelente cuidando das plantas, mas o mesmo não podia ser dito sobre a forma que lidava com pessoas. Era fria, não costumava falar muito e quando o fazia, não olhava nos olhos de quem a ouvia. Vestia sempre roupas discretas, com os mesmos tons pastel, pálidos e encardidos. Não saia muito de casa e não entendia qual era a necessidade que as outras pessoas tinham em fazer diferente.
Eliza a respeitava, mas era só isso. Nenhum outro laço mais forte fora criado entre as duas durante todos esses anos de convivência. Sentia falta de sua mãe, mas não costumava falar sobre ela.
Seu quarto não era excepcional, tinha uma cama aconchegante cheia de almofada e uma pequena escrivaninha perto da janela, que era coberta por grossas cortinas. Suas roupas ficavam em um pequeno guarda-roupa branco. E o chão era forrado por um tapete peludo. Um abajour se encontrava aceso, espantando o escuro e seus monstros enquanto Eliza continuava olhando para o teto.
Já se aproximava das quatro da manhã quando sua mente foi invadida por cenas do dia anterior. O prédio, o vento, o estranho. Quem diabos era aquele rapaz? Ele nem dissera seu nome, apenas pediu para que Eliza o encontrasse na manhã seguinte. Debateu consigo mesma os prós e contras de ir ao encontro de um estranho que tentara salvar sua vida. Riu de si mesma ao ver que estava com medo de que ele a sequestrasse, raptasse ou matasse, sendo que na verdade foi exatamente o que ele havia impedido no dia anterior, sua morte. Depois de participar de um ping-pong mental de ideias, suspirou e decidiu que iria sim encontra-lo, colocou na sua cabeça que nada poderia ficar pior do que estava no presente momento.
Pulou da cama e caminhou até o banheiro, escovou os dentes, tomou um banho quente, penteou o cabelo e o prendeu em um rabo de cavalo alto, não gostou e acabou o deixando solto, como sempre. Vestiu um jeans escuro e um cardigã verde-musgo. Calçou os sapatos e saiu sem tomar café.
Já se aproximava das sete da manhã quando chegou ao prédio da prefeitura. Olhou ao redor mas o estranho “salva-vidas” não estava em seu campo de visão, resolveu sentar na escadaria e esperar. Passaram-se vinte minutos e ela já começara a se sentir frustrada e abandonada quando percebeu que ao seu lado direito havia um pequeno baú de madeira, pouco menor que uma caixa de sapatos. Era feito de madeira escura, com desenhos entalhados por toda sua superfície. Eliza tinha certeza que aquele baú não estava lá quando chegou, e o pegou no colo. Não era muito pesado, nem muito leve, mas o que lhe chamou atenção foi a fechadura, tentou abrí-lo e percebeu que ele estava trancado. Junto ao baú havia um bilhete, escrito em letra cursiva: “Gostaria que cuidasse deste baú com mais cuidado do que cuida de sua vida. Me encontre aqui amanhã, neste mesmo horário”.
- Como essa coisa veio parar do meu lado? – Disse, sem perceber que as palavras lhe tinham saído pela boca, escapando de seu blablabla interno. Encolheu os ombros ao ver que tinha dito alto demais e meia dúzia de pessoas a olhavam com visível curiosidade.
Enfiou o baú debaixo do braço, colocou o bilhete no bolso de trás da calça e caminhou de volta para casa.